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Justiça cria “panaceia” ao condenar empresas a quebrar sigilo de usuários da internet

Para Fabrício Polido, doutor em Direito Internacional, tribunais estão tomando decisões sem base legal para obter dados de empresas que os armazenam em outro país. STF terá audiência pública sobre o tema dia 10.
Fabrício Polido, doutor em Direito Internacional e conselheiro do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris) (Foto: vídeo You Tube)

Os tribunais inferiores do Poder Judiciário da União estão criando uma “panaceia” (remédio para todos os males) ao condenar afiliadas de grandes empresas da internet no Brasil, como Facebook e WhatsApp, a multas e até prisão de executivos para obrigá-las a fornecer mensagens de usuários da internet envolvidos em investigações criminais. Essa é a análise do jurista Fabrício Polido, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, a respeito de ação movida pela Assespro, entidade de empresas de Tecnologia da Informação (TI), sobre o controle de dados de usuários por provedores instalados no exterior. O tema será debatido,  no próximo dia 10, em audiência pública programada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Polido entende que essas decisões judiciais ferem regras constitucionais, como a soberania dos países que sediam as empresas. “Estamos lidando com aspectos da soberania e da cooperação internacional que estão no artigo 4º da Constituição e que ninguém lê, além da preservação dos princípios do Estado democrático de Direito que, quando são violados, por meio de mecanismo de exceção, criam essa panaceia de decisões dos tribunais inferiores que não têm nenhuma reverência à Constituição”, afirmou ao Tele.Síntese.

Polido atua na Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) 51 no STF como conselheiro do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris), que se habilitou e fez contribuições ao processo como “amicus curiae” (amigo da corte), situação em que se encontram as empresas Facebook e Yahoo e a Sociedade de Usuários de Tecnologia (Sucesu Nacional).

Segundo a Assespro, o principal objetivo a ação é a validade do Acordo de Assistência Judiciário-Penal (MLAT) firmado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos. Promulgado pelo Decreto Federal 3.810/2001, o acordo permite o acesso a dados fornecidos por provedores internacionais para investigações criminais que envolvam pessoas, bens e valores situados fora do Brasil. Segundo a associação, no entanto, vários tribunais brasileiros requisitam as informações diretamente às empresas brasileiras filiadas aos provedores e não recorrem ao tratado bilateral.

Tele.Síntese: qual a importância da ADC 51 para os usuários da internet no Brasil?
Fabrício Polido:  A ADC 51 discute uma controvérsia jurídica constitucional sobre a aplicação de tratados de cooperação internacional pelos tribunais brasileiros, especificamente o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, e como ele se refere ao fornecimento de dados de usuários localizados no estrangeiro.

O que se discute nessa ADC no Supremo Tribunal Federal também é a relevância dos tratados e convenções, normas e garantias fundamentais em processos de investigação criminal envolvendo suspeitos e o uso de ferramentas da internet para a prática dos atos ilícitos.

A questão é saber se as autoridades brasileiras poderiam dispensar os tratados de cooperação internacional para ir diretamente às empresas e obter os dados de comunicações privadas [das ferramentas de internet] e, no caso de as empresas não fornecerem esses dados, aplicar multas ou mesmo ordem de prisão para diretores.

É uma questão atualmente discutida no mundo todo. É discussão sobre as implicações do fornecimento de dados sobre os direitos dos usuários de internet. Assim nos Estados Unidos no caso envolvendo a Microsoft Irlanda, em que aprovaram uma solução legislativa a esclarecer as formas pelas quais as empresas de internet estão legitimadas a divulgar, a fornecer esses dados de comunicação privada.

Tele.Síntese: O que é importante nessa discussão?
Polido: O importante é que não se trata simplesmente de fornecimento de dados de usuários, dados de registros e os metadados,  mas sim os dados de comunicação privada, de mensagens que são trocados entre usuários e que são protegidos pela inviolabilidade do sigilo das comunicações, uma matéria claramente constitucional.

Tele.Síntese: A proteção da privacidade das comunicações dos usuários da internet estaria ameaçada?
Polido: Estaria, sim. E  é muito importante observar por que estaria ameaçada. Qual é o grau de legalidade que haveria nessas medidas de fornecimento de dados pelas empresas ordenadas pelas autoridades? Quando criamos um Estado de exceções para sigilos fundamentais, estamos pactuando com a flexibilização de instrumentos e procedimentos para esses casos específicos. Então, por que as autoridades de aplicação da lei, que tem a Polícia Federal e o Ministério Público Federal e alguns juízes, estão de certo modo inconformados com a posição que tem sido adotada de proteção da privacidade e, acima de tudo, dos modelos de negócios que elas exploram? Por que apenas a captura de dados telemáticos resolveria as necessidades da investigação criminal quando a gente sabe que o desenvolvimento do processo não depende somente disso? É um conjunto de provas que têm de ser produzidas. Não vou entrar nesse detalhe porque eu não sou criminalista.  Mas essa é um das questões mais sensíveis que tem sido  levantados. O que eu estou dizendo é que quem pode mais pode menos. Nas situações em que o sigilo de dados está ameaçado, quem nos dá a garantia como usuários de que, em outras situações, a Polícia federal, o Ministério Público e as autoridades de aplicação da lei terão esse acesso privilegiado diretamente pelas empresas, sem nenhum grau de transparência, sem a preservação dos direitos e garantias fundamentais, como o devido processo legal, o direito ao contraditório e à ampla defesa? Para onde vão essas garantias?

Tele.Síntese: E do ponto de vista da cooperação internacional?
Polido: É algo muito preocupante que o Estado brasileiro e outros Estados passem a desrespeitar as regras internacionais, em vez de optar pela cooperação, que é o mecanismo pelo qual o processo transnacional se desenvolve, e no qual se resolvem casos da internet. Estados não podem simplesmente suprimir essas etapas, essas fases que são importantes para a preservação da soberania e da não ingerência de um Estado em assuntos de outro Estado. Então, a soberania não é absoluta. A visão de muitas decisões judiciais nesses casos, com uma aplicação também errônea do Marco Civil da Internet, é de pensar que a jurisdição brasileira é exercida de modo absoluto sem qualquer consideração com os mecanismos de cooperação jurídica internacional

Tele.Síntese: Há ameaça à soberania nacional quando são acessados dados de pessoas do Brasil que estejam no exterior?
Polido: Não à soberania nacional brasileira. Você violaria aspectos da soberania de outro Estado. Esses dados podem estar localizados nos Estados Unidos, na Irlanda e assim por diante. As empresas e toda indústria da internet também podem ser constrangidas a divulgar dados de usuários do Brasil, até porque a tendência é a concentração desses dados em nuvem. E essas etapas de cooperação jurídica internacional poderiam ser simplesmente suprimidas. O interessante é que o  problema diz respeito não apenas à legislação infraconstitucional, como é o Marco Civil da Internet, mas a normas constitucionais e também de tratados de direitos humanos que estão desconsideradas nesses casos, porque há a violação direta de direitos dos usuários quanto às garantias processuais e também do sigilo das mensagens e comunicações privadas. A soberania do Estado brasileiro não é absoluta e tem que observar o quadro de cooperação internacional, que deve sempre primar por observar as garantias constitucionais dos Estados e as normas de direitos humanos em relação às garantias processuais. Em muito casos, isso acaba não sendo observado. As empresas são obrigadas por decisões judiciais porque não há dispositivo legal que as obrigue a entregar esses dados. E por isso o usuário não tem conhecimento dos dados que tem sido transacionados, transferidos, divulgados ou fornecidos. Essas medidas violam a privacidade, não dos serviços utilizados, mas também a privacidade como direito fundamental. São decisões equivocadas com base em um paradigma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem repercussão constitucional.

Tele.Síntese: Qual foi esse paradigma do STJ?
Polido: Foi uma decisão da ministra Laurita Vaz como relatora de um inquérito criminal envolvendo o Google. Foi com base nesse inquérito que leva algumas posições a sustentarem que a questão deveria estar concentrada no STJ porque esse caso não teria nada de discussão constitucional. Eu não entendo dessa forma porque estamos lidando com aspectos da soberania e da cooperação internacional, que estão no artigo 4º da Constituição e que ninguém lê, além da preservação  dos princípios do Estado democrático de Direito que, quando são violados, por meio de mecanismo de exceção, criam essa panaceia de decisões dos tribunais inferiores que não têm nenhuma reverência à Constituição.

Tele.Síntese: Mesmo condenadas, as empresas estão sendo multadas e sujeitas a penas mais duras porque não estão conseguindo entregar esses dados, uma vez que eles estão no exterior?
Polido: As empresas que têm atividades operacionais em outros países acabam numa encruzilhada de conflitos de leis. Ao entregar os dados de usuários que estão em outro país, elas localmente também podem violar as leis daquele país. É o que acontece naquele país que limite a divulgação desses dados por parte de uma empresa de internet porque isso violaria o sigilo das comunicações privadas  de usuários. Então, esses dados não estão simplesmente sob controle da empresa, estão também sob a jurisdição daquele Estado.

Tele.Síntese: Então, essas decisões judiciais não estão alcançando esses dados por meio das empresas instaladas no Brasil?
Polido: Não, porque aí elas têm que seguir os mecanismos de cooperação jurídica internacional, que são morosos, anacrônicos. Isso exigiria movimento dos Estados para facilitar esses instrumentos. Mas, se a gente corta esses mecanismos, nós também estaríamos criando regimes de exceção. A solução passa por um momento de concertação de interesses.

Tele.Síntese: Essas empresas afetadas no Brasil  são afiliadas da Google, do Facebook?
Polido: A gente só pensa nessas. Mas pequenas e médias empresas brasileiras, por exemplo, que tem negócios na internet baseado em computação em nuvem e serviços prestados por empresas no estrangeiro, também vão encontrar essas mesmas dificuldades.

Tele.Síntese: Como a solução desse problema está acontecendo lá fora?
Polido: Isso acontece com decisões de emoção de conteúdo, de interceptação de dados, uso de instrumentos de interceptação de dados por agências de inteligência e como vem sendo utilizados na Rússia, na China, na Ucrânia, nas Filipinas, que hoje são países bastante controvertidos nas práticas de controle dos dados e de conteúdo na internet.

Tele.Síntese: A ameaça à privacidade dos usuários da internet está ocorrendo no mundo?
Polido: No mundo. A questão é que tipo de país a gente quer. Como o Brasil é a quarta maior comunidade digital do mundo, nos leva a uma preocupação ainda mais indicativa. Porque estamos falando de dados de usuários. A gente não está falando de investigados em ações criminais, mas sim de todos os usuários da internet. E estão dando decisões sem base legal e constitucional. E o brasileiro pode dispensar cooperação internacional?

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