Elisa Leonel: ” o consumidor do mundo digital precisa de confiança”.

As novas tecnologias do mundo digital demandam dos reguladores saber como aumentar a confiança e segurança da rede para o consumidor, afirma Elisa Leonel, que dirigiu a defesa do consumidor da Anatel por nove anos.
Elisa Leonel, e o mundo digital do consumidorFoto: Felipe Canova Gonçalves
Elisa Leonel aponta o que quer o consumidor no mundo digital . Foto: Felipe Canova Gonçalves

Para Elisa Leonel, as novas tecnologias do mundo digital demandam dos reguladores a necessidade de saber como aumentar a confiança e segurança da rede para o consumidor. Após nove anos comandando na superintendência de Relações com os Consumidores da Anatel, ela deixou o cargo e despediu-se da agência. Nesta conversa com o Tele.Síntese, Elisa aponta que, apesar de o setor de telecomunicações ocupar  os primeiros lugares no ranking das reclamações – o que para ela, não pode ser de outra forma, devido ao grande número de contratos diferentes que o setor firma com os consumidores – as pesquisas da agência apontam que, ano a ano, esse índice de reclamação está caindo.

No seu entender, as grandes operadoras ainda têm que melhorar principalmente no atendimento e na transparência das informações, e, por isso, defende a necessidade da regulação. Mas elogia algumas iniciativas adotadas de comum acordo,  conhecidas como “regulação responsiva”. Entre elas, a solução dos problemas do serviço de valor adicionado e do bloqueio das ligações indesejadas com o site não “não me perturbe”.

Elisa aponta, porém, que o maior desafio do futuro próximo para aqueles que atuam na defesa do consumidor será “como aumentar a confiança e segurança do consumidor nos serviços que ele faz uso”. Leia aqui os principais trechos da entrevista:

Poderia fazer um balanço do que acha mais importante na atuação da Anatel ao longo de sua trajetória de nove anos, em termos de  melhorias para o consumidor de telecomunicações?

Elisa Leonel: Primeiro, gostaria de  falar sobre a própria estruturação do tema na Anatel. Ainda que a Anatel sempre tenha feito regulações de proteção de consumidores, foi com a criação da superintendência, na minha visão, que a gente conseguiu pautar o tema Consumerista na Agência de um jeito mais estruturado, e hoje, todas as análises de impacto regulatório devem olhar para os consumidores. A Anatel se pauta em evidências de estudos e diagnósticos feitos e focados em comportamento e percepção dos consumidores. Em 2015, no planejamento estratégico, foram definidos os objetivos de melhorar a percepção do consumidor, aumentar a qualidade do serviço e melhorar a satisfação. A maior conquista desse tempo, na minha visão, foi a internalização da agenda de consumidores na agência, com uma cultura de se atentar para a proteção dos consumidores e para a melhoria da percepção deles com relação aos serviços.

Você acha que cabe ao regulador de mercado cuidar de consumidor? 

Elisa Leonel: Eu não tenho nenhuma dúvida disso, e cuidar de consumidor não quer dizer substituir o papel das entidades de defesa do consumidor, porque o fim último da regulação é atender à sociedade com um serviço que seria público, mas que está concedido, e ele precisa ser prestado com qualidade e com respeito a direitos. O resultado está aí. Depois de 2015, com a implantação superintendência de Relação com os Consumidores e início do Regulamento Geral de Consumidores (RGC), o setor tem um histórico consistente de queda de reclamações, de melhoria de percepção da qualidade. Esse resultado mais do que prova que uma agência reguladora que foca no consumidor consegue atingir resultados que a sociedade espera dela.

Não há conflito com os institutos de defesa do consumidor ou com o judiciário?

Elisa Leonel: Acreditando que a Anatel aprendeu a fazer estudos e a diagnosticar  sobre quais são os problemas dos consumidores, agora é hora de chamar a responsabilidade do setor privado para essa atuação. O fato de se ter uma área de consumidores ajuda a dar foco nesse diálogo com o setor privado, e não quer dizer uma atuação que substitua a defesa do consumidor dos demais institutos ou que substitua o judiciário. Se a gente olhar para os reguladores mundo afora, a proteção de usuários no setor de tecnologia e comunicações é o maior debate, porque hoje a gente tem o mundo da proteção de dados, o mundo da garantia da privacidade, o mundo das fraudes eletrônicas  e dos crimes cibernéticos que passam por debates do regulador. É inescapável que o regulador se preocupe com a proteção dos consumidores.

O resultado das pesquisas de qualidade, o que a gente percebe, é que as operadoras que não são reguladas são as que prestam melhor serviço.   As grandes teles argumentam que queriam também esse tratamento, mas a Anatel  não concorda com essa reivindicação. Por que não? E você não vê uma contradição em relação a esses resultados, com mão pesada da regulação?

Elisa Leonel: Eu acho que é exatamente o contrário. A pesquisa é a evidência para o nosso processo de planejamento regulatório. Se a pesquisa mostra que os pequenos estão com uma regulação mais flexível, mais leve, e estão com notas boas, o sinal é: continuem sendo assim porque  estão atendidos aos anseios da população. Isso acontece no Brasil e em outros países. Vou te dar um exemplo: em alguns países  empresas MVNO (Operadora Móvel Virtual) têm a mesma rede de uma grande empresa, ou seja, não têm rede própria e são melhores avaliadas no desempenho de rede. E por que isso?  Porque o bom atendimento contamina a avaliação que o consumidor faz  dos outros indicadores. Se a empresa pequena está atendendo bem, ainda que não tenha uma regra de call center 24/7,por que a Anatel precisa regular? A questão me parece contrária. Na medida em que o setor for melhorando qualidade, ele também será desregulado. A regulação é uma resposta aos problemas. Ela vem a partir de problemas e não o contrário. As grandes Telcos ainda não demonstram maturidade suficiente para serem desreguladas, ao passo que os pequenos ainda não mostraram que precisam ser regulados, porque as notas e percepção sobre eles está ótima, muita melhor do que a média dos grandes.

Do ponto de vista da regulação responsiva, o que já está aplicado ou não? O que falta ainda?

Elisa Leonel:  Vou dar dois exemplos de projetos pilotos que é motivo de muito sucesso; um deles é o serviço de valor adicionado. A Anatel tinha historicamente um volume de reclamações de cobranças indevidas de SVA (o famoso “comeu meu crédito no pré-pago”, que eram: nuvem de armazenamento, horóscopo, ringtone. O consumidor percebia que o crédito desaparecia no pré-pago. A Anatel tinha milhões de Pados (Processo de Aplicação de Descumprimento de Obrigação) aplicados para esse assunto, processos andando há décadas contra as prestadoras. E esse foi um dos primeiros pilotos da superintendência. Fizemos um diagnóstico profundo sobre qual era a natureza do problema e tanto do ponto de vista de percepção dos consumidores como de modelo de negócios, dessa parceria das operadoras com os terceiros, que eram provedoras de SVA. Chamamos o setor privado, e  em pouco tempo conseguimos fazer uma redução absurda de reclamações, uma queda de 80% .

 Nesse exemplo de regulação responsiva como as operadoras  mudaram o comportamento?

Elisa Leonel: Fizemos um plano de ação com as prestadoras. O plano de ação eram delas, cada prestadora com sua peculiaridade, com seu modelo, respeitando o seu contexto corporativo, a sua política, mas pactuamos alguns elementos e, a partir daí, elas passaram a implementar o plano de ação. Em seis meses, já tínhamos um resultado de quedas de reclamações muito expressivo. Me lembro de que no primeiro ano, quando o setor tinha uma queda de reclamações da ordem de 13%, a reclamação no SVA estava caindo 50%.

Qual sua avaliação sobre a iniciativa das grandes operadoras de lançar o site “Não Me Perturbe”

Elisa Leonel: A Anatel não tinha regras de proteção de consumidores no tema do telemarketing e a pressão era tanta que é fato que uma regulação tradicional não ia trazer respostas a tempo da demanda da sociedade. Abrimos um diálogo com as prestadoras  e elas se comprometeram com um conjunto de princípios que foi construído em parceria com a Anatel: o “Não me Perturbe”. Seis meses depois a plataforma estava implantada, já impactava dez milhões de códigos de acessos que não querem receber chamadas. E se tem, obviamente, falhas, e se a gente ainda vê problemas, volto insistir que é parte do amadurecimento do processo e vejo  como falhas naturais, e temos que seguir cobrando. A Anatel tem feito um trabalho de cobrança de diligência grande no tema, mas a verdade é que o setor conseguiu implementar uma plataforma em um tempo que a gente não teria, caso a gente optasse por uma regulação tradicional. Não tem um projeto de sancionamento aberto na agência sobre isso, não tem um regulamento, nem uma lei federal que regule o assunto, e ele está funcionando no setor de telecom.

Mas é contraditório, porque a Anatel acabou de tomar uma medida com telemarketing, imputando o 0303.

Elisa Leonel: O 0303 é uma estratégia da Anatel porque o telemarketing tem uma natureza complexa e extrapola o setor de telecomunicações. A plataforma não é substituta e não é substituível pelas outras estratégias da Anatel. No telemarketing, então,  temos uma interface com os consumidores que é o direito dele de bloquear as chamadas, a outra é garantir maior transparência aos consumidores, de que tipo de chamada ele está recebendo, e  isso requer numeração específica, e por fim, uma terceira iniciativa, que a Anatel está discutindo e também se complementa, é a gestão da rede. Ainda que a gente tenha recursos de numeração específicos que o consumidor bloqueie, o fato é que sempre vão haver descumprimentos, fraudes, e isso só consegue bloquear e acabar de uma vez por todas quando a gente faz gestão do tráfego da rede. Essas iniciativas não são contraditórias, são complementares, e mundialmente temos visto movimentos parecidos como este que o Brasil está se adequando. Não há nenhuma incoerência.

Essa medida 0303 da Anatel não enfraquece a experiência da regulação responsiva?

Elisa Leonel: Em absoluto! Acho injusto dizer que a plataforma deu errado. Ela deu certo, mas não é suficiente.

Com essa mudança acelerada que está acontecendo com os dados, inteligência artificial… Como você vê essa questão consumerista no futuro?

Elisa Leonel: O que tem sido discutido aqui e internacionalmente é que o consumidor desse mundo digital precisa de confiança. O grande debate é como aumentar a confiança e segurança do consumidor nos serviços que ele faz uso. Uma série de inovações tecnológicas, serviços novos, um potencial tremendo do 5G e com isso, eu vejo esse desafio de como a gente informa o consumidor. Acho que essa é uma responsabilidade do setor tanto quanto da Anatel, porque o consumidor é parte desse desenho de segurança. A engenharia social precisa estar fortalecida para que as redes sejam seguras, e, do outro lado, que tipo de regulações e abordagens corporativas e regulatórias a gente precisa ter para garantir a segurança das redes e a proteção dos consumidores. Novos modelos de negócios e novas tecnologias e plataformas vão demandar uma discussão profunda de segurança e confiança nas redes. Para mim, esse é o assunto do momento.

Apesar das iniciativas, o setor de telecomunicações continua no topo das reclamações dos consumidores…

Elisa Leonel: Temos que olhar muito mais para o histórico do que para o retrato, na medida em que o retrato tem uma variável e esse é um fenômeno mundial que é inescapável: o setor de telecomunicações tem um volume de contratos firmados na sociedade, e se olhar o volume absoluto, ele sempre estará no topo de reclamações. É assim em praticamente todos os países. O volume de reclamações não relativizado não é um bom termômetro de desempenho do setor de telecomunicações. A gente tem um serviço massificado e é natural que ele figure nesses volumes absolutos. O que não é natural é que quando a gente desdobra essas reclamações, vemos que tem coisas muito simples que não precisariam chegar a um órgão público, que não precisariam ser escaladas para uma agência reguladora. A pergunta é como as empresas podem dar maior efetividade aos seus canais de atendimento para que isso não escale. Problemas acontecem e a pergunta é como resolver os problemas de um jeito mais efetivo e sem dor para o consumidor.

A verdade é que as reclamações vêm caindo. Isso quer dizer que as empresas têm investindo em melhorias dos seus canais de atendimento e estão garantindo mais resolutividade. Mesmo com a base de assinantes crescendo, o volume de reclamações na Anatel  e no Sistema de Defesa do Consumidor vêm caindo de uma forma consistente desde 2015. Outra questão que eu cito como avanço nesse caminho de aumentar resolutividade foi a regulação da Anatel, instituindo ás ouvidorias. No ano passado, as ouvidorias das empresas atenderam um número de reclamações maior que a Anatel, então, de fato, elas estão absorvendo essa demanda na sociedade. Os problemas que as centrais de atendimento e canais de atendimento de primeiro nível não conseguem resolver têm sido escalados para as ouvidorias e elas estão conseguindo atender um volume de consumidores expressivo de modo que a gente comemore esse resultado. Se a gente olha para outros setores, enquanto o setor de telecomunicações desce, alguns setores sobem, em volume de reclamações, então isso mostra também qual o comportamento em relação  a outros setores da economia.

 Ano passado os mais reclamados foram os setores financeiro e telecom.

Elisa Leonel: Sempre serão. Por causa disso que eu estou mencionando, quantos por cento da população brasileira tem acesso à serviços de saúde privado? Quantos têm acesso a serviços de aviação comercial? E quantos por cento são os consumidores de telecomunicações? Nós temos mais consumidores de telecomunicações do que a própria população brasileira, temos mais contratos de telecomunicações ativos do que a população brasileira, então é natural que a gente tenha esse volume. Outro termômetro importantíssimo é a pesquisa de qualidade percebida da Anatel. Ainda que a gente veja alguns avanços na pesquisa de qualidade percebida, ela traz alertas importantes: o setor de telecomunicações ainda falha em ser transparente com a sociedade, ainda é um setor mal avaliado.

Quando fala em “ser transparente”, ao que se refere?

Elisa Leonel: A forma como o setor oferta serviços, a forma como explica as cobranças que acontecerão naquele contrato, a forma como vende. O setor ainda falha no canal de atendimento e na resolutividade. As pessoas, por questões bastante simples, precisam passar por atendimentos que não são nada resolutivos e nada efetivos, o que vem melhorando, mas ainda está longe de ser satisfatório. Falta incorpora o quanto as práticas coorporativas das empresas incorporam a  proteção dos consumidores com a mesma diligência que incorporam, por exemplo, sustentabilidade ambiental ou a prevenção de corrupção. Como é que se forma um pacote de serviços, que tipo de informação eu passo quando vendo um serviço, que tipo de propaganda eu faço, que tipo de gestão eu faço dos meus terceirizados… O setor de telecomunicações é um setor que depende muito de parceiros, e é preciso que as empresas sejam diligentes com estes parceiros, porque a gente nota que muitas das falhas estão associadas com estes contratos com terceiros, e esse talvez seja o ponto que ainda falta ser discutido e desenvolver melhor nas empresas de telecomunicações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Miriam Aquino

Jornalista há mais de 30 anos, é diretora da Momento Editorial e responsável pela sucursal de Brasília. Especializou-se nas áreas de telecomunicações e de Tecnologia da Informação, e tem ampla experiência no acompanhamento de políticas públicas e dos assuntos regulatórios.
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