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“BRICS são os únicos que entenderam de fato o alcance da espionagem dos EUA”

Luca Belli, da FGV-Rio, acaba de organizar uma obra de análise das políticas digitais do bloco e comenta que, após medidas mais assertivas do governo brasileiro na cibersegurança, o Brasil perdeu relevância mundial na regulação da internet

Países do BRICS

Os países que compõem o bloco BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, e África do Sul) são o futuro da tecnologia e ainda assim há um deserto de pesquisa sobre a regulação digital no grupo, afirma o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio, Luca Belli. Na faculdade, o pesquisador coordena o Centro de Tecnologia e Sociedade e o projeto CyberBRICS.

Os projetos organizaram o livro Cyberbrics: Regulação em Cibersegurança nos Brics. Publicado pela FGV-RIO com a editora alemã Springer, a obra cobre cinco dimensões de regulação digital no bloco: proteção de dados, proteção ao consumidor, crime cibernético, preservação da ordem pública online e defesa cibernética. Em entrevista ao Tele.Síntese, Belli comentou sobre as descobertas das pesquisas que levaram à obra.

Além do grande potencial tecnológico, os BRICS se destaca pela forte reação às revelações de Edward Snowden a respeito da espionagem dos Estados Unidos. Segundo o professor, o bloco foi o único que, de fato, compreendeu a extensão dos efeitos colaterais da interferência estadunidense. No entanto, o Brasil, após medidas assertivas contra espionagem no governo Dilma, deixou de ter relevância internacional em políticas digitais.

Em reunião dos líderes do BRICS em agosto, os cinco países anunciaram um compromisso de compartilhamento de informações e intercâmbio de melhores práticas, capacitação e combate aos crimes cibernéticos.

Os BRICS também têm entre suas prioridades a proteção de dados dos consumidores, em especial China, Rússia e Índia. Isso porque os países possuem maior consciência do seu valor de mercado advinda de sua larga população também geradora de dados. Confira:

Tele.Síntese – Como o BRICS está posicionado em relação ao resto do mundo na regulação da internet?

Luca Belli, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Rio e do projeto CyberBRICS – Os países do bloco BRICS são particularmente interessantes porque pelo menos alguns deles, ao longo da última década, se tornaram inovadores e até lideranças mundiais em termos de desenvolvimento de tecnologia e política de regulação. 

Com as revelações de Edward Snowden em 2013, todo o mundo compreendeu o tamanho do uso de tecnologia para a espionagem. Mas os países do BRICS são os únicos que entenderam verdadeiramente o alcance dessas revelações. Ou seja, o valor da tecnologia não é somente em termos de coleta de dados para monetização, mas também para estratégia.

Em 2013, houve uma declaração conjunta do BRICS na África do Sul. É a primeira declaração desse grupo no qual eles destacam a segurança das tecnologias e da proteção de dados. Em 2014, eles criaram um grupo de trabalho sobre segurança da informação justamente com o objetivo de tocar boas práticas, informações sobre gestão de incidentes cibernéticos. 

Rússia e China chegaram a assinar um acordo de cooperação cibernética para cooperação de um lado, mas também obrigações de não ataque cibernético entre eles. Isso se tornou o primeiro tratado de cooperação cibernética no qual dois países concordam com a não ingerência entre eles.

A Índia saiu, no espaço de uma década, de um país com nenhuma tecnologia criada domesticamente para o país com o maior número de startups no mundo. 

Como o Brasil atua no bloco? Houve mudança de política dentro do BRICS no governo Bolsonaro?

Belli – Nos últimos anos, claramente, houve alteração da postura brasileira no âmbito do bloco BRICS, por causa das mudanças de orientação do governo atual com os presidentes anteriores. 

Uma das revelações do Snowden foi que a linha pessoal da presidenta do Brasil era hackeada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos estados Unidos. As informações não eram sobre os dados dos consumidores brasileiros serem coletados e explorados abusivamente pelas empresas americanas. Membros do governo em um nível mais elevado estavam suscetíveis a espionagem e, na verdade, foram alvos cotidianamente de espionagem por esse mecanismo de vigilância maciça. 

O Brasil em 2014 organizou uma conferência mundial de governança da internet em São Paulo com participação de governos, sociedade civil, empresas e especialistas do mundo todo para justamente chamar atenção para as revelações. Estamos falando de uma postura muito assertiva do lado brasileiro naquela época. Depois, as coisas mudaram. Hoje em dia não podemos dizer que o Brasil tenha alguma relevância particular em nível global em termos de politicas digitais. 

Você afirmou que os países do BRICS foram os únicos que, de fato, entenderam o que as revelações de Snowden significavam. Quais as causas por trás disso?

Belli – O Brasil foi alvo de espionagem. Não precisava de nada mais para entender quais os efeitos negativos. Fora isso, está em um contexto latino-americano, no qual as ingerências americanas são bastante conhecidas desde o Chile nos anos 70 e, também, na política brasileira nos anos 60, 70, 80. 

Do lado russo, já passaram décadas desde a Guerra Fria, mas a relação [entre os países] nunca se esquentou muito. Eles [russos] sabem quais os efeitos adversos disso [espionagem] porque participaram e foram vítimas por décadas. 

A China tem uma intolerância à influência estrangeira que é evidente. Não é algo tolerado, como na Europa ou até no Brasil atual. O país tem  uma consciência maior do potencial da própria população e do mercado. Países como China e Índia tem um 1,5 bilhão de pessoas, são mercados enormes. Eles sabem que esse não é um tipo de mercado que você abre mão tão facilmente. 

Por qual motivo vocês escolheram organizar uma obra sobre o BRICS?

Belli – É um grupo sobre o qual tem um deserto total de pesquisa em termos de regulação digital. Esse é o primeiro livro do mundo que analisa as políticas digitais dos países do BRICS. O grupo foi criado há 20 anos sem uma zona geográfica e são países totalmente diferentes. É extremamente interessante analisá-los, mas também é desafiador.

O objetivo do nosso estudo é analisar alguns dos marcos regulatórios, instituições de países que são o futuro. A era americana-europeia acabou. Não estou falando que sejam totalmente irrelevantes, mas quem é o futuro da tecnologia são a China, a Índia e, talvez, a Rússia. É interessante estudar esses países para entender como eles alcançaram esse nível e quais foram as estratégias deles. 

Sendo países tão diferentes entre si, há algum padrão de regulação digital entre eles?

Belli – Tem três áreas em que é muito evidente a convergência dos países do bloco BRICS: segurança de dados, regulação de conteúdo e cibercrime. Esses três assuntos foram analisados e regulamentados por quase todos os BRICS nos últimos dois, três anos, sobretudo segurança de dados e regulação de conteúdo.

A Rússia impõe, desde 2017, uma lei de proteção de localização de dados, o que significa que os dados devem ser armazenados em servidores no território nacional. Essas são obrigações que a China tem e a Índia está pensando em implementar na nova lei de proteção de dados.

O Brasil também regula a proteção de dados. No âmbito brasileiro, a segurança deve ser incluída em qualquer prática de gestão de governança, seja a nível administrativo, seja de práticas técnicas. 

Aconteceram muitos avanços em termos de gestão da cibersegurança. Inclusive, o Brasil foi um dos pioneiros na adoção de regulamento de cibersegurança no setor das telecomunicações. Em dezembro do ano passado, o país adotou um regulamento de cibersegurança para evitar a polêmica que estava sendo criada no âmbito da 5G, a fim de garantir segurança mais de vanguarda possível. 

Existe uma iniciativa entre os BRICS de regulação digital já levando em conta a chegada da 5G?

Belli – Todo o BRICS tem interesse na 5G, porque a tecnologia se revelou uma manobra de marketing muito boa pela maioria das operadoras telefônicas do mundo. Todos esses avanços tecnológicos geram muitos impactos sociais, mas  poucos governos entendem todo o espectro das consequências da automação digital.

No âmbito da África do Sul, a 5G também é considerada como algo instrumental para a 4ª Revolução Industrial. Esse fenômeno, que começou a  ter muita visibilidade no Fórum Econômico Mundial, foi abraçado totalmente pelo governo sul-africano. Porém, na África do Sul tem um debate muito mais democrático e avançado do que em outros países ditos desenvolvidos sobre o que essa revolução implica de verdade. 

É uma automatização geral que vai criar muitos ganhos para poucos atores, gerando ainda mais renda sem distribuí-la? Ou pode ser também algo inclusivo que passa pela educação, pelo desenvolvimento da capacidade da população para poder ser desenvolvedor de tecnologia, e não somente consumidor? 

Os chineses consideram essa tecnologia como algo essencial para a política industrial nacional. Tornou-se extremamente estratégico a promoção da tecnologia 5G. Eles entenderam que a dominância dos EUA é um reflexo da dominância tecnológica do país sobre os aplicativos e softwares.

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