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Regulação

Vetos à lei da ANPD podem dificultar negócios entre Brasil e Europa

Advogados entendem que independência da autoridade foi mais uma vez minada.

Os vetos de Jair Bolsonaro à lei de criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais estão sendo como ameaça à credibilidade da legislação e podem, inclusive, ter reflexos sobre as relações comerciais entre empresas brasileiras e europeias. Segundo advogados ouvidos pelo Tele.Síntese, houve enfraquecimento da legislação, da própria autoridade, e distanciamento da lei europeia, que serviu de modelo à brasileira e é vista como a mais protetiva do consumidor no mundo.

“O resultado dos vetos, para nós, pode ser de que o Brasil não seja reconhecido como um país com nível adequado de proteção de dados pessoais. Sem esse reconhecimento por parte da Europa, não teremos um livre fluxo de dados”, avalia Raphael Dutra Campos, especialista em proteção de dados pessoais do escritório carioca Vinhas e Redenschi Advogados.

A consequência será a definição, por contrato, de obediência a requisitos comuns na Europa, mas não aqui. Quando isso não for possível, países como a Argentina podem ser o destino dos dados de europeus, reduzindo o benefício econômico que a lei traria para o mercado brasileiro.

Exemplo de veto que pode trazer tais problemas foi o retirada do parágrafo 4º do artigo 41. A mudança deixa de exigir que o encarregado na empresa pela proteção de dados pessoais tenha conhecimentos regulatórios. “O encarregado é figura central da lei, que vai se comunicar com os titulares, quanto com a autoridade nacional em caso de insegurança ou sobre o tratamento adequado. Essa figura é muito robusta no GDPR, o regulamento europeu”, acrescenta Campos.

Outro veto problemático ocorreu no parágrafo 3º do artigo 20, que tratava da revisão por um ser humano de decisões automatizadas. “O regulamento europeu nos traz a possibilidade de que o titular dos dados busque uma decisão humana caso discorde da automatizada. Mais uma vez nos distanciamos desse padrão ouro da União Europeia e com isso perdemos um mercado importante”, ressalta o advogado.

Marina Pupo Nogueira, sócia do escritório campineiro Freire Bertani Pupo Nogueira, vê ainda esvaziamento das funções da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, a ANPD. Isso aconteceu com os vetos três incisos e a dois parágrafos do artigo 52, e ao inciso V do artigo 55-L. Estes itens estabelecem punições não pecuniárias e a possibilidade de a ANPD cobrar por serviços.

“As sanções administrativas retiradas previam a suspensão do banco de dados por 6 meses, ou mesmo da operação da empresa por igual período. A retirada pode atrapalhar a eficácia da lei, uma vez que as grandes empresa podem arcar com as multas. A consequência de violar a lei tem que ser sentida pelas empresas”, afirma a advogada.

O veto à cobrança de taxas terá impacto sobre a independência da autoridade, que terminou integrada à Presidência da República. “Vai acabar sendo um órgão mais dependente da Presidência, sem liberdade orçamentária”, frisa.

Ela espera que parte dos vetos sejam derrubados no Congresso, o que acontece se houver 257 deputados e 41 senadores favoráveis à derrubada. “A lei é importante para economia. É uma lei técnica e bem elaborada. Tem pressão para a derrubada de alguns vetos”, afirma.

Melhor que nada

Para Luis Fernando Prado, sócio especialista em Direito Digital, Privacidade de Proteção de Dados do escritório Daniel Advogados, de São Paulo, a publicação da lei, mesmo com vetos, encerra um longo ciclo de debates que resultaram no marca regulatório para a proteção de dados. “Muita gente teve que ceder em muitos aspectos para que tivéssemos essa lei. Com as novas modificações, gostando ou não, temos uma versão final”, resume.

A seu ver, os vetos podem criar alguma insegurança na relação com a União Europeia, mas a confiança com o bloco deve se estabelecer no médio prazo. Os europeus poderão levar em conta não apenas o quão semelhante são as legislações de proteção de dados, mas também a importância do mercado brasileiro. “Recentemente a União Europeia reconheceu o Japão como país com nível semelhante de proteção de dados, muito em função do reconhecimento da importância econômica dessa relação”, analisa.

Mais preocupante que os vetos, a forma como a ANPD está constituída, sujeita à Presidência da República, poderia ser o principal entrave às relações com o bloco europeu.  “Será que eles vão considerar que essa ANPD tem competência para fiscalizar empresas e o próprio governo?”, questiona.

Ainda assim, ele considera melhor uma ANPD sob a Presidência, do que nenhuma. A confiança pode ser construída e o reconhecido pode se dar no futuro. Não seriam os vetos, portanto, que poderiam impedir aprofundamento do fluxo de dados entre empresas brasileiras e europeias. Por isso mesmo, duvida que o Congresso volte a tocar no tema.

“Acho difícil que se derrube algum desses vetos. O tema vai acabar esfriando no Legislativo, é difícil que os parlamentares comprem essa briga de novo. Ainda que alguns vetos sejam polêmicos, estão fundamentados”, diz.

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