Bayma: Lei de Comunicação Social Eletrônica vai desabrochar?

O debate será sobre enquadrar ou não as redes sociais da Internet no conceito de meios de comunicação social. Como serão enfrentados os diversos questionamentos que versarem sobre uso irregular das redes sociais?
Bayma escreve sobre Lei de Comunicação Social Eletrônica
Para Israel Bayma, o Brasil vive um momento de necessidade de transição para um novo modo de regulação das comunicações. Crédito-Divulgação

Por Israel Fernando de Carvalho Bayma

O Brasil viveu recentemente um intenso e caloroso debate sobre liberdade de expressão, travado em razão dos diversos critérios e pontos de vista sobre os limites do uso e abuso das redes sociais.

Coube, quase sempre, ao Judiciário manifestar-se sobre o entendimento e contorno dessa dita liberdade de expressão – que não é absoluta – sempre à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Neste sentido, todos aqueles que atuam, de alguma forma, ligados às áreas de tecnologia, acompanharam as diversas tentativas do uso das conquistas da convergência tecnológica dos meios de comunicação social para destruir a jovem democracia brasileira. Ao mesmo tempo, também se viu as redes sociais, que trafegam nas várias plataformas tecnológicas, serem usadas para atacar as instituições brasileiras e a Constituição Federal de 1988.

Pergunta-se: por que ainda restam dúvidas sobre se esses novos e modernos meios de comunicação devem ou não ser regulados? Onde estão as divergências? São eficazes as legislações existentes ou se precisa de normas mais modernas?

No ano passado, a União Europeia propôs, e o Parlamento Europeu aprovou, o seu pacote de proposições legislativas sobre serviços digitais: o Digital Services Act (DSA) ou Lei dos Serviços Digitais e o Digital Markets Act (DMA) ou Lei dos Mercados Digitais. Essas leis ¨visam criar um espaço digital mais seguro, onde os direitos fundamentais dos usuários sejam protegidos e estabelecer condições equitativas para as empresas¨[2]. Embora não sejam as melhores soluções para o caso brasileiro, é preciso olhar o que está acontecendo no mundo e o que faz mais sentido para o nosso País. Afinal, já são duas grandes referências para o debate de regulação das comunicações convergentes.

No Brasil, há importantes legislações sobre esses temas, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei n.º13.709, de 2018), a Lei do Marco Civil (Lei n.º 12.965, de 2014), e a própria Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei n.º 9.472, de 1997) na regulação de telecomunicações. E ainda tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 2.768, de 2022, que regulamenta as fake news. Além de decretos, resoluções, portarias e outras normas jurídicas que versam sobre internet, telecomunicações, comunicação, rádio e televisão. Enfim, dispersas normas jurídicas sobre esses temas.

Vê-se, assim, o quanto é importante trazer-se à baila esse debate contemporâneo sobre o uso  de tecnologias eletrônicas ou digitais, como muitos preferem.

A nova legislatura,[3] que se inicia em 1.º de fevereiro de 2023, com a posse dos deputados e senadores eleitos no pleito de 4 de outubro passado, há de colocar o Legislativo Federal frente a todas essas questões que se levantam sobre o tema tratado deste artigo.

Até porque o Governo Federal recém eleito, que tomou posse no dia 1.º de janeiro deste ano, vem sinalizando, desde a campanha eleitoral recente, que pautará a regulação das novas tecnologias convergentes e poderá, assim, formular uma política pública adequada para tratar desse assunto.

De pronto, por meio de ato próprio, o Governo que assumiu já estabeleceu a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos seus Ministérios que poderão se debruçar sobre comunicações, embora tenha deixado o detalhamento da organização desses órgãos federais para os decretos de estrutura regimental. No entanto, nesse ato, já foram verificadas algumas atribuições institucionais[4].

Estrutura

Ao Ministério das Comunicações é dada a atribuição de cuidar das políticas de telecomunicações, radiodifusão e correios, além de serviços digitais.             Ao Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação ficará a responsabilidade de desenvolver as políticas de transformação digital e de desenvolvimento da automação. Para a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) coube a promoção da liberdade de expressão e dos direitos na rede e educação midiática, por meio da recém-criada Secretaria de Políticas Digitais.

            Por outro lado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública deverá estabelecer as políticas para o tratamento de dados pessoais.  De outra forma, o Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos lidará com transformação digital dos serviços públicos, governança e compartilhamento de dados.

Entretanto, nada ficou dito, até agora, sobre o encaminhamento a ser dado para a regulação das comunicações convergentes ou digitais. E nem mesmo se haverá uma lei geral de comunicação social eletrônica.

Isso também chamou a atenção da sociedade civil organizada, conforme relatado pela jornalista Miriam Aquino, do Portal de Telecomunicações, Internet e TICs – TeleSíntese[5].

Ora, se vê, então, porque o setor de telecomunicações é um segmento profundamente afeto a esse tema. Portanto, uma excelente razão para se apresentar esta reflexão.

Vive-se hoje, no Brasil, um momento de necessidade de transição para um novo modo de regulação das comunicações, devido a fatores de ordem tecnológica, econômica e social, definidos de acordo com tendências nacionais e globais conhecidas.  A presença da internet, das plataformas tecnológicas com suas redes sociais e de toda a tecnologia associada a aplicações variadas do ambiente digitalizado na vida das pessoas é inexoravelmente irreversível.

Neste sentido, o conceito da comunicação social foi estendido. Antes eram só jornais, rádio e televisão, agora, as novas plataformas digitais foram incorporadas, e a denominação deve passar a incluir a expressão comunicação social eletrônica.

E isso se inicia nas décadas de 1990 a 2010, quando um grande tema mobilizava a área tecnológica em todo o mundo desenvolvido: a convergência tecnológica ou digital. O brutal avanço tecnológico alcançado pela humanidade, que evoluiu, das válvulas, transistores e microprocessadores, para chips,  permitiria, a partir de então, integrarem voz, dados e imagens, por meio de novas plataformas digitais. Essa nova tecnologia foi gerada a partir da miniaturização dos dispositivos eletrônicos que baseiam seu funcionamento em uma lógica de base binária, em que os dados são identificados por 0s e 1s.

Ciente desse momento revolucionário e transformador, o Poder Constituinte Derivado aprovou, por meio da Emenda Constitucional n.º 36, de 2002, a inclusão de texto constitucional no §3.º do artigo 222 da Constituição Federal de 1988, com a expressão “comunicação social eletrônica” buscando, talvez, assim, atualizar a Carta Magna, face ao ambiente de convergência eletrônica ou digital que se moldava naqueles primeiros anos da revolução tecnológica do século 21.

Ocorre que, por isso, e por tudo que se disse anteriormente, surge a necessidade de dar aplicabilidade e eficácia a essa norma constitucional, via legislação infraconstitucional, elaborando uma lei geral de comunicação eletrônica que seja um marco regulatório completo e adequado para superar os desafios da revolução tecnológica em curso e preencher uma importante lacuna no arcabouço regulatório setorial brasileiro.

E por que se faz essa afirmação? É necessária porque, desde a promulgação da Constituição, as normas anteriores a 5 de outubro de 1988, que versavam sobre comunicação e, pelo princípio da conservação das normas foram recepcionadas, já se mostravam desatualizadas,  incompletas, ultrapassadas, dispersas ou mesmo fragmentadas. E, hoje, precisam se modernizar ainda mais, como se disse anteriormente, frente ao avanço de novas tecnologias, em que a comunicação social eletrônica não é mais só rádio e televisão, envolve internet, redes sociais e novas plataformas de conteúdo.

Fragmentação

O sistema regulatório brasileiro da comunicação, disperso por várias instituições, está fragmentado por várias normas e, desatualizado, não consegue regular, em um ambiente de convergência digital com tecnologias da chamada 4.ª Revolução Industrial, com redes sociais, provedores de streaming, deep web, big techs, 5G, blockchain, fake news etc, as demandas tecnológicas, políticas, sociais e culturais de uma sociedade globalizada da informação. Consequentemente, pode-se ponderar a eficácia limitada do dispositivo constitucional do § 3.º, do artigo 222, da Constituição de 1988, por deixar para o legislador ordinário a elaboração de uma norma reguladora da comunicação social eletrônica? E se perdurar essa lacuna regulatória poderá afetar, entre outros, o respeito a direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna de 1988? É o que se procura destacar neste artigo.

Neste sentido, se busca no doutrinador José Afonso da Silva[6] uma classificação das normas constitucionais em: a) normas constitucionais de eficácia plena; b) normas constitucionais de eficácia contida e c) normas constitucionais de eficácia limitada. Considera esse autor que, no momento em que é promulgada, a norma constitucional não tem o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de uma lei integrativa infraconstitucional. São normas, portanto, de aplicabilidade mediata e reduzida.

Por outro lado, a professora Maria Helena Diniz[7] traz seu conceito de normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação, correspondendo, assim, às normas de eficácia limitada na classificação de José Afonso da Silva. Para ela “Surgem, por exemplo, como se fossem botões de rosa; com a interferência legislativa requerida, desabrocharão, visto que haverá, com a regulamentação dos direitos que delas decorrem, uma ampliação de seus efeitos, que irradiarão concreta e imediatamente.” Dessa forma, com base no conceito de Maria Helena Diniz, pode-se afirmar que tem eficácia limitada o dispositivo constitucional do § 3.º, do artigo 222 da Constituição Federal de 1988, por deixar para o legislador ordinário a elaboração de uma norma reguladora da comunicação social eletrônica independente da tecnologia – a Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica (LGCE)?

A título de exemplo, no campo do Direito Eleitoral, o debate conceitual sobre comunicação social eletrônica e seu uso como meio de comunicação tem causado impacto no exercício dos direitos políticos. Os tribunais eleitorais têm tido divergências quando julgam ações de uso indevido dos meios de comunicação e abuso de autoridade, para enquadrar as redes sociais da Internet no conceito de meios de comunicação social. E os julgadores se veem diante da seguinte questão: as redes sociais enquadram-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o artigo 22 da Lei Complementar 64, de 1990[8]? Sendo assim, a clareza da definição do conceito de comunicação social eletrônica é urgente. As campanhas eleitorais têm feito um uso intenso de novas tecnologias para impulsionar a corrida eleitoral, como se viu nas eleições gerais de outubro passado. Ocorre que nem sempre os candidatos fazem o uso adequado dessas novas tecnologias, extrapolando os limites da liberdade de expressão. O fenômeno da fake news (notícia fraudulenta) é um exemplo – como ocorreu nas recentes eleições deste ano de 2022 -, que levou à cassação de Fernando Destito Francischini, deputado estadual pelo Paraná, eleito deputado federal em 2018 (ele obteve 427.749 votos, ou 7,51% do total), que, usando as redes sociais em 2018, sofreu uma ação de abuso de autoridade e uso indevido da Internet como meio de comunicação social.

Hoje, grande parte da doutrina e da jurisprudência brasileira entende que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, assim como a Constituição que prevê que nenhum direito é absoluto, sendo passível de ponderação com outros direitos. Mas como garantir o direito fundamental da liberdade de expressão, em meios de comunicação, em um ambiente de convergência tecnológica tão complexo, que vai do rádio digital, passando pela TV digital, pelas redes sociais, pelos fenômenos das blockchains e pelos smart contracts, sem falar na observância da LGPD para proteção dos dados pessoais sensíveis que circulam nas redes sociais?[9] Imagine-se a justiça eleitoral tendo que se utilizar da tecnologia de blockchain para julgar uma AIJE[10] de abuso de direito econômico com dados armazenados em um smart contract, realizado por um dispositivo de comunicação como o smart device? Isso tudo se valendo de sistemas de Inteligência Artificial (IA)[11]? A esse respeito, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 21/2000, uma iniciativa  da Câmara dos Deputados, que busca estabelecer em uma sociedade como a nossa, amplamente desigual, com racismo estrutural e com desigualdade estrutural, os princípios, regras, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da IA no Brasil.

Face a essas questões levantadas, pergunta-se: quanto e de que forma as normas existentes serão impactadas com uma nova regulação? E se perdurar essa lacuna regulatória, por omissão do Poder Legislativo, não se intenta contra a vontade do legislador derivado de introduzir um moderno conceito de comunicação social eletrônica, estabelecido nesse §3.º do artigo 222 da Constituição de 1988? Essa é uma discussão que não finda neste artigo, pois novas tecnologias estão sendo acrescentadas a esse ambiente convergente, desde as transmissões de celulares em 5G ou 6G, passando pelo ambiente do metaverso e pela física quântica para as comunicações na sociedade.

  Por fim, como o Executivo Federal que ora assume conduzirá esse assunto?

Em uma rápida consulta ao Portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dos processos judiciais das últimas eleições, pode-se verificar que a propaganda eleitoral irregular pela Internet, e o abuso do poder econômico ou dos meios de comunicação pelos candidatos ao pleito de 2022, por meio das redes sociais, foram alguns dos temas mais acionados na Justiça Eleitoral.

Então, o debate será sobre enquadrar ou não as redes sociais da Internet no conceito de meios de comunicação social. Como serão enfrentados os diversos questionamentos que versarem sobre uso irregular das redes sociais?

Parafraseando a jurista Maria Helena Diniz, com a regulamentação da norma disposta no § 3.º, do artigo 222 da Constituição, se verá surgirem, como um botão de rosa a desabrochar, os efeitos que dela decorrem.

Por fim, esses assuntos aqui tratados, com certeza, hão de interessar tanto àqueles que atuam no setor de telecomunicações, quanto àqueles que querem ver o País socialmente moderno, com normas claras, robustas e juridicamente condizentes com a contemporaneidade do século 21.

Israel Bayma é Engenheiro eletricista, com especialidade em eletrônica e telecomunicações; Especialista em Regulação de Telecomunicações pela UnB; Especialista em Assessoria Parlamentar pela UnB. Foi engenheiro do setor elétrico por mais de 40 anos; Diretor de Planejamento e Engenharia da Eletrobrás-ELETRONORTE e Conselheiro Consultivo da ANATEL; Acadêmico de Direito da Escola de Direito e Administração Pública (EDAP) do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília); e Desenvolve atividades de consultoria especializada nas áreas de conhecimento. ORCID 0000-0002-2248-3627.

[2]PARLAMENTO EUROPEU. O pacote da Lei de Serviços Digitais. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package. Acesso em: 3 jan 2022.

[3]Trata-se da 57.ª que, segundo a a CRFB88, em seu artigo 44, parágrafo único, estabelece que cada legislatura terá a duração de quatro anos e o Decreto Legislativo n.º 79, de 5 de dezembro de 1979, dispõe sobre a designação do número de ordem das legislaturas, tomando por base a que teve início em 1826, com vistas a se manter a continuidade histórica do Parlamento brasileiro.

[4] O Presidente da República editou a Medida Provisória n.º 1.154, de 1.º de janeiro de 2023, que trata sobre organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.

[5]AQUINO, Miriam. TELESINTESE. Disponível em: telesintese.com.br/juscelino-filho-sera-o-novo-ministro-das-comunicacoes-pelo-uniao-brasil/. Acesso em:  2 jan 2022.

[6]SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª edição, São Paulo. 1998. p.82.

[7]DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. Saraiva. 2009. p. 102-103.

[8]O TSE tem considerado a Internet como meio de comunicação social regulando sobre veiculação nas diversas ferramentas virtuais disponibilizadas na Internet. (REspe 31-02/RS, redator para acórdão Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJE de 27/6/2019).

[9]PEDROSA, Clara Bonaparte. Desafios à liberdade de expressão na Internet. In Direito e tecnologia: Discussões para o século XXI. Erechim: Deviant. 2020.

[10]AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL – AIJE tem por objeto o ilícito eleitoral concernente ao abuso de poder. Seu fundamento legal encontra-se no artigo 14, § 9.º, da CF, artigos 222 e 237 do CE, e artigos 19 e 22 da LC n.º 64/90. Esses dispositivos compõem um conjunto normativo que enseja a responsabilização e o sancionamento do abuso de poder em detrimento da integridade do processo eleitoral e, pois, das eleições.  GOMES, José Jairo. Direito eleitoral.16. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

[11]SILVEIRA E SILVA, Glacus Bedeschi. TEIXEIRA, Luiz Felipe Drummond. SANTANA, Mariana Damiani.  Smart contracts concluídos por smart devices: entre o consentimento e o comportamento social típico. In: Direito e tecnologia: Discussões para o século XXI. Erechim: Deviant. 2020.

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