Sandro Mendonça: “as plataformas digitais regulam o espaço que são donas”

O professor Sandro Mendonça, dirigente da Anacom e membro do Centro de Altos Estudos da Anatel, defende a regulação das big techs que têm "poder de intermediação significativo".

Sandro Miguel Ferreira Mendonça | Foto: ANACOM

O professor Sandro Mendonça, diretor da Anacom – agência reguladora de telecom de Portugal, está prestes a concluir o seu mandato de cinco anos. Nesse bate-papo, demonstra seu entusiasmo com as mudanças que poderão ser promovidas pela Anatel, o regulador brasileiro, para também regular as plataformas digitais, ou as big techs,  a exemplo do movimento que acontece na Comunidade Europeia. Para ele, essas plataformas precisam de regras que garantam maior transparência e mais governança, já que até hoje são elas próprias que regulam os seus espaços – públicos e privados. Defende a necessidade de regular aquelas que têm “poder de intermediação significativo”.  E diz: “Nesse mercado, a concorrência é escassa. É como no sistema capitalista, em que todo o rico é livre de dormir debaixo da ponte”.

Faz ainda outras afirmações contundentes, como a de que o 5G ainda não se mostrou ao que veio em qualquer parte do planeta, e que talvez a inovação nos serviços só ocorra com a 6G. E mostra-se  bastante entusiasmado com a atuação dos operadores regionais brasileiros.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como avalia o estágio da sociedade digital de Portugal e Brasil? 

Sandro Mendonça –  Hoje, nós sabemos que conectividade faz parte da vida das pessoas e das empresas. E sabemos que em ambos os países os reguladores tiveram um enorme papel na construção de um ecossistema bem mais diversificado e com potencial de adaptação às
mudanças que nessa década estão muito intensas. Existem caminhos para o futuro, estamos em um momento de bifurcação.

Em que sentido você acha que existe uma bifurcação de caminhos?

Sandro Mendonça: Passamos de um regime de concessões de empresa pública para uma revirada para o século XXI. Estivemos
perto de duas décadas em um regime competitivo, bastante equilibrado entre poucos, os poderosos operadores. De um lado surgiram novas tecnologias e padrões técnicas – 3G, 4G. Com a competitividade que virá com o 5G, este momento é de rearticulação dos planos de negócios. Ainda estamos em expectativa. Mas no Brasil, há uma nova massa de pequenos provedores que surgiram, fibrando as ruas mais distantes, regiões menos assistidas, estados menos densificados. E essas empresas de pequeno porte  se provaram que conseguem se sustentar com proximidade, ao cliente, com conhecimento técnico bastante robusto, uma enorme competência em informatizar suas operações. Essa nova franja competitiva significa que houve uma grande mudança, no caso brasileiro.

E por que você avalia que o surgimento dos ISPs só aconteceu no Brasil? 

Sandro Mendonça: Essa nova franja competitiva e empreendedora de técnicos, nós não temos aqui em Portugal.  Estamos comparando um mercado de 200 milhões com um mercado de 10 milhões de habitantes. Aqui estão acontecendo  fenômenos de desintegração vertical, em que nós vemos a emancipação do mercado das infraestruturas. Portanto, aqui, as infraestruturas, sobretudo as torres, ganham vida própria, como um negocio autêntico, gerido agora por duas empresas. No nível da desintegração vertical, aconteceu que as empresas tradicionais – MEO, Vodafone, NOS-  começaram a vender esses ativos e as empresas que agora se tornaram especializadas posicionam-se como operadoras neutras, que aliviam na gestão de posse. Os operadores  se concentram mais nas suas ofertas comerciais e na boa gestão de suas redes. É claro que isso aconteceu também em um momento de passagem de década, em que nós tivemos aqui o leilão do 5G.  O que é certo é que estamos nesse momento com novos players, novos atores, e esses atores fazem com que toda a infraestrutura física seja neste momento uma área muito dinâmica em Portugal. Como  exemplo, um novo sistema de cabos submarinos, que vai ligar Açores e Ilha da Madeira.

Por que o lançamento de cabos submarinos é importante? 

Sandro Mendonça:  Antes, os cabos submarinos eram pequenos e chegavam para distribuir, mas hoje é preciso colocar processamento de dados e memória, uma vez que a latência é muito importante para todo o consumo do audiovisual. Essa grande demanda por conteúdo faz com que haja em torno dos pontos da amarração de cabos um encaixe de atividades, que são complementares, baseadas em dados,
além de processamento de sinais e sensorização. Tivemos um terremoto em 1755, no dia de Todos os Santo, 1º de Novembro. Nossa cidade
foi completamente destruída e todas as igrejas tinham velas, porque estávamos na era medieval. Tudo caiu, o que não caiu, queimou. E depois veio um tsunami. Depois dessa situação dramática, toda a cidade de Lisboa mudou. Hoje ela é geométrica.  Hoje não somos orgânicos, somos racionalistas. Sabemos que há sempre um risco e esse risco é vital. Portanto, o cabo submarino pode também tirar partido das vibrações do leito oceânico.

O investimento para esses novos cabos é do governo?

 Sandro Mendonça: Sim. É orçamento do Estado. Cremos que o projeto é desafiador, também para o desenvolvimento de soluções que sejam distintivas do ponto de vista da segurança ambiental e marinha. A Anacom deu um importante impulso para esse projeto, assim como a Anatel, que estimula novas tecnologias, como o OpenRan e o Wifi6E.   O regulador hoje em dia é mais multidimensional, tem que ser mais dinâmico e ao mesmo tempo mais adaptativo, ou seja, não pode assumir que a estrutura do mercado vai ser sempre a mesma. Mas também tem que ser participativo, tem que contribuir para abertura de estudos, não tem que se comprometer com cenários em
particular. Deve estimular o livre encontro dos entes privados e dos entes públicos.  Costumo destacar o Brasil como um exemplo ao nível internacional, que vai permitindo enriquecer o setor com novos protagonistas, novas tecnologias.

A Europa está atrasada no 5G, não está?

Sandro Mendonça: Eu diria que apesar de tudo, temos sucesso, uma vez que o ritmo da adoção  tem sido bem sucedido. Mas, vamos lá, a 5G é uma tecnologia que continua indefinida ao nível das novas ofertas. Ou seja, não temos ainda nenhum produto “matador”. É uma geração que não se integra. Não temos na Europa, não temos nos EUA, não temos no Hemisfério Sul. Por exemplo, na Coreia do sul,  não temos nada de novo para contar.  Sabemos que há investimento, sabemos que há muito interesse dos fabricantes em dizer que isso seria pior
sem um novo padrão, sem uma nova tecnologia. Mas ainda não temos algo que o usuário perceba ao fim do dia.  É possível que
essa seja a maldição dos números ímpares. Temos a lembrança do 3G, que não aconteceu nada. O 2G foi uma grande revolução e o 4G permitiu muito trabalho em rede, muita conectividade das empresas, novos modelos de negócios, na comunicação entre as pessoas.

E o 4G vai sobreviver ainda por muitos anos….

Sandro Mendonça: Sabemos que no 4G nem tudo foi bom, pois, com a grande possibilidade de espalhar informação também surge a grande possibilidade de contaminar esferas públicas que se tornaram bolhas, e que depois podem ter derivações impensáveis. Sabemos também que um bom sucesso tecnológico nem sempre vem com  progresso social. Tudo isso mostra que conhecer as tecnologias de mercado é importante e que a tecnologia tem que ser multidimensional. A Anatel é um grande exemplo disso, porque já incorpora nas suas ações regulatórias dimensões que antes eram menos destacadas, como a cibersegurança, ou a sua ação sobre a pirataria. São exemplos de que as agências são também mais multidimensional. No caso da Anacom, ela sempre foi conhecida pela sua competência na governança das infraestruturas. E, neste momento, o que está em em pauta para os reguladores é a temática das plataformas digitais.

Como enxerga o papel dessas plataformas digitais?

Sandro Mendonça:  Essas empresas têm vastos recursos e um deles é o conhecimento extraído através dos dados de cada um de nós, nas nossas condutas privadas pessoais, mas também das nossas condutas enquanto profissionais (empresas), ou nas nossas estruturas públicas. Essas novas entidades têm hoje uma combinação de auto força de grande escala. Não só elas são enormes, com grandes investimentos, mas, quanto mais mercados atenderem, mais eficientes se tornam. Isso provoca um efeito bola de neve, em elas ficam com mais velocidade a expandir, com uma capacidade de se desdobrarem em vários tipos de mercado. Não são apenas redes sociais, não são apenas lojas de eletrônicos,  elas vão nos dando cada vez mais serviços em cada vez mais dimensões da nossa vida pública e pessoal.

 E quais são os principais riscos que você vê?

Sandro Mendonça: Nada pode impedir uma Amazon de me trazer medicamentos em casa, tendo uma licença para comprar no mercado de
medicamentos, uma vez que tem uma cadeia logística própria. Se uma empresa como o Google oferece e-mail também para a minha empresa e vai fazer todo o back office da empresa e outras prestações de serviços, essa empresa passa a atuar em todos os lados, inclusive, ao fazer o back office com serviços de nuvem, passa a conhecer até mesmo os clientes das operadoras clássicas de telecom, que estão a virtualizar as suas redes.

Mas essas plataformas facilitaram muito a nossa vida. Pelo Google, por exemplo, eu acho o lugar que quero ir, o restaurante que vou comer, a mensagem que vou mandar…

 Sandro Mendonça: Sim, nós estamos cada vez mais dependentes de grandes atores e que têm poucas obrigações, como, por exemplo, continuidade de serviço. Imaginemos que nós dois temos uma empresa e que estamos sempre a depositar nossas confianças e expectativas no whatsapp, onde trocamos facilmente qualquer informação.  De repente, acontece uma interrupção do serviço. Qual a nossa capacidade de resposta? Ou,  o que acontece se nossa empresa perder seus arquivos de emails? Onde estão as obrigações de continuidade do serviço por parte dessas plataformas?
Nesse mercado, a concorrência é escassa. É como no sistema capitalista, em que todo o rico é livre de dormir debaixo da ponte…. Nessa esfera digital, não há uma concreta e efetiva concorrência . Essas plataformas digitais têm hoje um poder de transmissão significativo.

Em que estágio está o debate a as decisões no âmbito da Comunidade Europeia?

Sandro Mendonça: No momento,  estamos ainda com uma indefinição, embora já tenhamos força no DMA e DSA (Digital Market Act e Digital Services Act). O DMA poderá distinguir grandes plataformas digitais, porque, quando falamos de negócios normais, temos que garantir que não há má governança de dados, temos que garantir que não há no comércio eletrônico venda de produto contrabandeado, falsificado. Vai haver uma espécie de Champion League de grandes plataformas digitais, que vão ter que ser designadas como tais, e aí serão reguladas com poder de mercado. Em Bruxelas, por causa dessa legislação, já vemos essas plataformas digitais se tornarem mais presentes, mais pulsadas com as suas equipes em contratarem antigos reguladores técnicos. Vemos que o interesse aumentou muito com o fato de confrontarem com esse novo potencial de obrigações. E uma regulação aqui abriria precedentes para outras fora da Europa, que seriam moldadas a sua imagem.

A LGPD no Brasil é um exemplo disso, é muito parecida com a da Europa.

Sandro Mendonça: Eu acho que o Brasil, agora, tem uma possibilidade de inovar na própria regulação digital. Estou confiante de que o caso da Anatel será um excelente exemplo. A regulação setorial é exigente, e poderá configurar um conjunto de entidades com poder de mercado significativo, ou melhor, poder de intermediação significativo, e a partir de então, ter um leque de obrigações.

Mas não é um diálogo fácil, pois  acaba vinculado à regulação do conteúdo…

 Sandro Mendonça: Não, não é! E é apenas uma das partes de um quebra cabeça, cujas peças não encaixam e nós não sabemos qual a imagem que podemos ter. Na Europa, você vai perder a noção do número de leis que abordam o tema, como o DMA, o DSA, o European Media Freedom Act (EMFA), o Data Act.. Existem mais, tudo ao mesmo tempo. Portanto, quando nós falamos de mídias sociais, dados
pessoais, dos conteúdos… Vemos também que os conteudistas se sentem expropriados pela própria monetização das empresas que controlam as redes, tal como acontece agora.  É colocar o dedo na ferida sobre a partilha de benefícios, uma vez que os conteúdos giram nas redes
das plataformas digitais, ou seja, em bolhas que elas são donas e elas se apropriam do valor econômico. Para os operadores de telecom, também há o debate. Elas dizem “nós investimos  muito em redes, mas as receitas nós não temos”.

Mas todos dependem da internet…

Sandro Mendonça: As telecomunicações, empresas de mídia, empresas que colocam seus produtos nas grandes lojas de comércio eletrônico, todos colocam seus conteúdos em uma grande tenda, assim como os audiovisuais, os youtubers. Só que nenhum deles controla os algoritmos.  Acho que é inevitável falarmos em atualizar e melhorar a governança, em parte algorítmica, em parte de neutralidade da rede. Nós já temos intervenções nessas áreas que são próximas de livre expressão ou de livre transação no mercado regularizado; produtos, serviços e trocas de opiniões. Essas empresas digitais não revelam como priorizam os seus fluxos informativos. Elas na prática regulam o seu espaço, e não foi o Estado que perpetuou isso.  Elas controlam bens, regulam quem entra e quem sai. Sabemos que há muitos conteudistas que têm sido afastados das redes sem explicação, até presidentes de países, ou pessoas que não percebem porque suas contas de twitter acabam por ser baixadas na visibilidade. Existe uma certa insatisfação. Nós vivemos uma paz de enamoramento quando chegou o 4G. Vimos uma janela para o mundo que nos permitia falar com todos, comprar um livro na hora, uma passagem de avião. Agora, há uma reação, já sentimos um mal estar, porque essas empresas, efetivamente, regulam o espaço que são donas.

Acha que é possível alterar essa atuação sem mudar o modelo de negócio delas?

Sandro Mendonça: Acho que elas próprias vêm mudando os seus negócios. Alguém se lembra do Google Plus? Não  há nada sagrado no que elas fazem. Elas vão pelo caminho mais lucrativo. Certamente viram o consumidor contemporâneo, que eram dados, e essas plataformas sabem muito mais sobre a vida interna das empresas. Essas plataformas entraram por todos os lados e têm ao seu dispor muitos recursos retóricos. Muitas vezes põem à frente um valor que as precede, que já existia antes delas chegarem, que é o valor da sociedade aberta, da democracia representativa. E dizem que são guardiãs disso, mas são guardiãs das suas arenas privadas, das quais não são transparentes. A transparência e o compromisso de aceitação das obrigações têm que entrar no modelo de negócios de qualquer empresa importante para as nossas vidas.

 

Sandro Mendonça – Prof. de Economia na ISCTE Business School e Prof. Convidado da Universidade de Lisboa.
Conselheiro da Anacom, membro do conselho superior do Centro de Altos Estudos da Anatel, e membro do Conselho Consultivo do Observatório do Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) da República Portuguesa.

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Miriam Aquino

Jornalista há mais de 30 anos, é diretora da Momento Editorial e responsável pela sucursal de Brasília. Especializou-se nas áreas de telecomunicações e de Tecnologia da Informação, e tem ampla experiência no acompanhamento de políticas públicas e dos assuntos regulatórios.
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