Gustavo Alves e Rabelo Filho: Uma verdade inconveniente sobre o setor de Telecomunicações

Durante quase 20 anos o setor de telecomunicações contribuiu com recursos absolutamente malversados ou não aplicados na finalidade para a qual se justificou a sua cobrança

*Por Antonio Reinaldo Rabelo Filho, mestre em direito Tributário, Membro das Comissões Especiais de Direito Tributário, Falência e Recuperação Judicial do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Políticas Fiscais e Defesa do Contribuinte da OAB/RJ

 

Gustavo Baptista Alves, Presidente da Associação Brasileira de Estudos Tributários das Empresas de Telecomunicações

“Government’s view of the economy could be summed up in a few short phrases: if it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it.” Ronald Reagan

[Em tradução livre: “A visão do governo em relação à economia poderia ser resumida em poucas palavras: se ela se movimentar, tribute. Se ela continuar se movimentando, regule-a. Se ela parar de se movimentar, subsidie-a.”]

O brocado acima aplica-se no Brasil de forma peculiar. Ali onde houver setor econômico potencialmente pujante, tributa-se. Independentemente do seu desempenho, tributa-se ainda mais. Aproveitando-se que ele ainda não sucumbiu, passa-se a regulá-lo ainda mais. Sucumbido o setor, iniciam-se as discussões sobre como e quando desonerá-lo ou tornar a regulação mais eficiente… Até lá, ficam os mortos no caminho.

No último 31 de março, as prestadoras de serviços de telecomunicações recolheram aos cofres públicos federais mais de R$ 1,3 bilhão a título de Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF). O tributo é cobrado anualmente sob a justificativa de custear as atividades exercidas pela Anatel relativas à fiscalização das estações de telecomunicações utilizadas nas atividades dessas empresas, sendo calculado a partir do número de equipamentos/centrais de comunicações/SIM Cards em operação.

Além da fabulosa quantia antes citada, o governo federal ainda espera arrecadar mais alguns milhões de reais a título de Taxa de Fiscalização de Instalação (TFI), a qual supostamente custearia a fiscalização que a Anatel deve realizar a cada nova instalação dos equipamentos de telecomunicações antes mencionados, aferindo se estes se adequam aos requisitos legais e regulamentares.

Em acréscimo às mencionadas taxas recolhidas ao Fundo Setorial de Investimento nos Serviços de Telecomunicações – FISTEL, as empresas de telefonia sustentam, quase exclusivamente, a Empresa Brasileira de Comunicação – EBC e a Agência Nacional de Cinema – Ancine.

Realmente, é preciso melhor explicar.

Como é sabido e consabido, a privatização da prestação dos serviços de telecomunicações foi um sucesso retumbante. O acesso aos serviços públicos de telecomunicações passou de algo caro e restrito, para algo disseminado, ofertado a preços razoáveis e com boa qualidade e universalidade.

Desde o início da privatização da prestação do serviço, vigia a Lei nº. 5.070/66, que regulava a cobrança de taxa pelo exercício de poder de polícia sobre os equipamentos de telecomunicações e o uso que os mesmos fazem das radiofrequências, recurso administrado pela União. Com a Lei Geral das Telecomunicações, Lei nº. 9.472/97, que disciplinou a prestação dos serviços públicos de telecomunicações por empresas privadas e criou a Anatel, alterou-se o anexo àquele diploma legal para definir novos valores e alíquotas da referida taxa.

Ocorre que de lá para cá, com o crescimento exponencial do acesso aos serviços de telecomunicações, principalmente dos serviços móveis, a arrecadação da taxa, como consequência, cresceu na mesma proporção sem que, obviamente, se tenha observado a necessidade de correlação razoável de sua arrecadação com o montante despendido no exercício do poder de polícia fiscalizatória exercida pela Agência. A discrepância é de uma obviedade ululante. Enquanto o total do orçamento da Anatel não chega a R$ 300 milhões de reais, a arrecadação da taxa situa-se na faixa de cinco vezes este valor!

Não há a possibilidade de qualquer estudante de direito furtar-se a afirmar, sem a menor dúvida, que a referida taxa é inconstitucional! Mas, no Brasil é diferente. A taxa resta sendo firmemente exigida todo ano, ao final do primeiro trimestre. Cobrada pela Anatel para, ato contínuo, transferi-la para o Tesouro Nacional, que delas se vale para tentar alcançar as metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, via contingências ou aplicações em finalidades absolutamente distintas ao setor de telecomunicações. O setor, obviamente, busca os seus direitos no Judiciário, mas, desde 2006, pouco avançaram os seus pleitos.

Nestes últimos 20 anos de privatização e de cobrança das taxas de fiscalização carreadas ao Fistel, alguns ajustes foram feitos, evidentemente. Mas não para desonerar o setor. Apenas para compensar novos ônus impostos às operadoras de telecomunicações.

Com efeito, de lá para cá, dois principais ajustes foram feitos. O primeiro, reduzindo a Taxa de Fiscalização para, através da instituição da Contribuição para Fomento da Radiodifusão Pública, custear a radiodifusão sonora e a EBC, a imprensa oficial, cuja continuidade é corriqueiramente posta em xeque por membros do atual governo. Qual o objetivo aqui? Fomentar a cultura nacional com a veiculação de conteúdos voltados à divulgação das políticas e produção cultural nacionais.

Não se quer aqui emitir juízo de valor sobre a relevância ou não deste propósito. Afinal, cultura é informação e informação contribui para a formação do cidadão, inserindo-se na noção mais ampla de educação, valor de altíssimo quilate. Verdade, porém, que temos visto um completo desaparelhamento da EBC, em crise com o governo e impedida de continuar aprovando projetos e produção de conteúdo há algum tempo. Enfim, não entraremos neste mérito.

Mas, a pergunta que se faz é: por que diabos são as empresas de telecomunicações que assumem o custeio deste propósito praticamente sozinhas? Qual a relação dos serviços de telecomunicações com os serviços de radiodifusão e o fomento da veiculação de notícias e conteúdos nacionais considerados como de interesse público?

A justificativa que se dá é: primeiro, porque a taxa de fiscalização, como vimos, sobeja mesmo agora, depois da redução efetivada para fazer surgir a CFRP. A saída para o governo é, então, redirecionar o excesso. Segundo, porque o acesso aos conteúdos nacionais produzidos pela EBC através da internet (serviço de telecomunicações) traria benefícios para o setor, que, assim, deveria contribuir para ele.

Quanto ao segundo argumento utilizado, ok, vá lá. Alguma referibilidade pode se alegar haver. Mas, ainda assim, resta a pergunta: por que são as empresas de telefonia que arcam com aproximadamente 90% do custo total destinado ao fomento da radiodifusão pública e da EBC? Não há justificativa plausível para isso. Simples assim.

Às operadoras de telefonia, mais uma vez, restou recorrer ao Judiciário. Também nesse caso, aguardam há vários anos um pronunciamento do Judiciário. Enquanto isso, continuam a custear a EBC…

Mais tarde, nova redução das taxas de fiscalização destinadas ao Fistel. Agora para permitir que as operadoras de telefonia possam também contribuir para as atividades de fomento ao cinema nacional conduzidas pela Ancine. Não, infelizmente, não é brincadeira.

Também são as operadoras de telefonia que sustentam, em grande parte, os fundos setoriais destinados ao fomento da produção cinematográfica nacional, regulado pela Ancine e pelo Conselho Nacional do Cinema – CNC. Isso se dá através do recolhimento da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – Condecine.

E aqui, de novo, o mesmo argumento: as operadoras de telecomunicações são as grandes interessadas no conteúdo cinematográfico, pois, ao menos para a telefonia móvel e acesso à internet em banda larga, em tese, podem angariar mais clientes para as suas bases, com o crescimento do consumo online de tais conteúdos. Ora, mais uma vez, repise-se: ainda que exista alguma pertinência funcional dos serviços de telecomunicações com os conteúdos audiovisuais, entre os quais os nacionais, não há razão de ser para que as operadoras de telecomunicações respondam por mais de 90% do custeio da atuação estatal nesse setor!

Aliás, resta salientar que a prevalecer este tipo de argumento para criar novas hipóteses tributárias incidentes sobre o setor de telecomunicações, ter-se-ia uma situação esdrúxula em que as rede de telecomunicações, meios de acesso para diversas transações e mercados (e-market, serviços bancários online etc.) justificarão a escolha das operadoras para custear qualquer tipo de ação estatal sobre a economia por meio de contribuições de intervenção no domínio econômico.

Imagine-se, por exemplo, que se queira intervir nos serviços bancários. Como boa parte destes serviços são prestados via internet, estaria justificado serem as operadoras de telecomunicações os seus principais contribuintes. Outro exemplo, seria na hipótese de se querer intervir no setor de varejo. Fácil é verificar o crescimento do varejo online, que, em teoria, justificaria serem as operadoras contribuintes de mais uma CIDE para servir de atuação do Estado neste setor. Os exemplos seriam infinitos e, a prevalecer o discurso que pretende legitimar a cobrança da CFRP e da Condecine em face das operadoras de telefonia, em todos eles se justificaria a referibilidade das teles com o propósito da intervenção para as legitimar como contribuintes!

Mais uma vez, socorreram-se as operadoras às barras do Poder Judiciário, na esperança de afastar a indigitada cobrança da Condecine. Infelizmente, sem sucesso ainda.

Não pensem, entretanto, que para por aí. A Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, previu, ainda, a oneração dos serviços por mais duas contribuições de intervenção no domínio econômico – CIDE. A primeira, incidente à razão de 1% sobre a receita bruta de telecomunicações com alguns poucos ajustes, destinada ao Fundo para a Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST e a segunda, incidente sobre a mesma base, à razão de 0,5%, a carrear recursos ao Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico do Setor de Telecomunicações – FUNTTEL.

Tais contribuições de intervenção pecam, por seu turno, pela absoluta ausência do que a doutrina e a jurisprudência de escol têm chamado de equivalência razoável entre a arrecadação que proporcionam aos cofres públicos e aplicação dos ditos recursos nas finalidades descritas na lei. No caso do FUST, há, ainda, um agravante, por a própria Anatel reconhecer o exaurimento, no plano fático, da finalidade que deu origem à referida CIDE. Explico.

No primeiro aspecto, ambas as contribuições interventivas pecam por arrecadar ao menos 10 vezes mais do quanto aplicado nas finalidades para que foram criadas. No caso da contribuição ao FUST, aliás, simplesmente, dos mais de R$ 20 bilhões arrecadados até hoje, cerca de 0,001% foi aplicado na universalização dos serviços de telefonia fixa comutada – STFC.

No segundo aspecto, aplicável à contribuição ao FUST, agrega-se ao vício de inconstitucionalidade o fato de que a Anatel reconheceu publicamente que o serviço de telefonia fixa, a cuja expansão o Fundo se destinava, já encontra-se devidamente universalizado, estando agora, ao contrário, em franco declínio, substituído que vem sendo pelos serviços de dados e aplicativos de voz e mobilidade.

Ou seja, mais uma vez, é preciso reconhecer que, durante quase 20 anos o setor de telecomunicações contribuiu com recursos absolutamente malversados ou não aplicados na finalidade para a qual se justificou a sua cobrança! E, para piorar, não custa lembrar que as normas legais que instituíram tais contribuições estabeleceram a impossibilidade de que o custo destes tributos pudesse ser repassado no preço dos serviços. Ou seja, seriam, necessariamente, arcados pelas operadoras.

Apenas para que não nos percamos nas contas. São duas taxas (Taxa de fiscalização de instalação – TFI e taxa de fiscalização de funcionamento – TFF) e quatro CIDEs (Contribuição ao fomento da radiodifusão pública; Contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional; Contribuição para a universalização dos serviços de telecomunicações e Contribuição para o desenvolvimento tecnológico dos serviços de telecomunicações). Isso tudo sem falar do ICMS (alíquota média de 30%), ISS (sobre determinados serviços de valor adicionado) e dos tradicionais tributos federais, Contribuição ao PIS, Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins, Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL.

Na frente regulatória, não há refresco, tampouco. Para que usemos recursos de numeração (sim, os números atribuídos aos terminais telefônicos e usados indiscriminadamente pelos aplicativos de mensagens e voz sem nada pagar por isso), paga-se preço público. Para operar os serviços de telefonia fixa comutada (sim, aqueles terminais fixos cujo uso vem decrescendo consistentemente há anos e só agora se resolveu discutir o fim da sua prestação pelo regime de concessão) paga-se um preço anual, conhecido como ônus da concessão.

Enfim, melhor parar por aqui. E está-se falando de serviços públicos! Como justificar-se, em qualquer economia séria, a oneração, nesta magnitude, de serviços públicos de infraestrutura cuja exploração, claramente, traz inclusão digital e incremento econômico e de receitas para a sociedade e para o País?

Mais recentemente, tomou-se conhecimento do avanço do PL nº. 7.656/17 na Câmara dos Deputados, que veicula isenção das taxas ao Fistel, Condecine e CFRP para os equipamentos de telecomunicações destinado à comunicação de objetos conectados à rede mundial, a chamada Internet das Coisas ou IoT (Internet of Things). Ou seja, aqueles usados para a comunicação máquina a máquina, permitindo a digitalização e interligação de equipamento e ofertas de uma grande variedade de novos serviços.

Também se divulgou que a Anatel iria encaminhar ao Ministério da Ciência, Inovações e Comunicações – MCTIC proposta de alteração do FUST. A proposta seria estruturada em quatro pilares: (1) ampliação dos investimentos do Fundo para quaisquer investimentos em infraestrutura de telecomunicações e não apenas ao STFC; (2) possibilidade de que as próprias operadoras façam os investimentos em infra; (3) instituição do BNDES, como fundo garantidor dos investimentos; e (4) criação de um Comitê Gestor para analisar os projetos de investimento.

Não se pode deixar de tecer loas à busca por maior justiça e racionalidade tributárias para o setor de telecomunicações, que vem sendo capitaneada pelos presidentes da Câmara e do Senado na atual legislatura. O problema é que, ao menos até agora, as iniciativas são muito tímidas e não resolvem a questão jurídica posta nos vários anos de arrecadação desperdiçada, como colocado aqui.

Em outras palavras, e trazendo os ensinamentos do ex-presidente americano Ronald Reagan, referenciado no início deste ensaio, é chegada a hora de subsidiar o setor! Não é razoável que depois de mais de R$ 30 bilhões arrecadados em fundos setoriais custeados quase que exclusivamente pelas operadoras de telefonia, como visto, não se possa pensar numa política pública racional e séria que vise a desonerar o setor com a contrapartida de realização dos importantes e maciços investimentos necessários para que o País possa cobrir o gap tecnológico existente após anos de investimento não suficiente para colocar o Brasil no patamar de países mais desenvolvidos.

Neste contexto, a desoneração pontual da chamada internet das coisas ou a possibilidade do uso do FUST para investimentos em internet de alta velocidade não são suficientes. O setor precisa: (i) se desonerar das pesadas taxas de fiscalização destinadas ao Fistel, que devem ser reduzidas para alcançar o valor suficiente para custear as atividades da ANATEL; (ii) se desonerar do peso de ter que contribuir para fomentar a radiodifusão pública e desenvolver o cinema brasileiro; (iii) se desonerar de ter que contribuir com 1,5% de suas receitas para Fundos (FUST e FUNTTEL) sobre os quais não tenha certeza e nem controle sobre as políticas e planos de aplicação de recursos para eles carreados.

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